quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

O Bodoque do Meu Pai

A História conta o seguinte : em 24 de junho de 1503 uma modesta embarcação pesando 120 toneladas partiu do modesto francês de Honfleur rumo ao desconhecido .....Após pouco mais de 6 meses , mais precisamente em 5 de junho de 1504 , avistaram uma terra ao longe e no dia seguinte desembarcaram ali mais precisamente em um porto natural localizado na embocadura - semelhante a um rio francês chamado ORNE  - daquilo que julgavam ser um imenso rio : aqueles franceses , liderados por um certo BINOT PAULMIER DE GONEVILLE , além de terem se impressionando com a deslumbrante beleza daquela terra estranha logo deram de cara com o povo que ali vivia ......Nada de violência : os nativos eram amistosos e pacíficos , e além de andarem semi nus e usarem arco e flecha para se defender , tinham como alguns características os fatos de usarem braceletes feitos de ossos ou conchas , as mulheres terem seus cabelos trançados com fibras vegetais de cores vivas e brilhantes e os homens ostentarem cocares feitos de penas altas e coloridas e ainda o fato de viverem em pequenas aldeias constituídas por ocas feitas de pau a pique ( o número de ocas variava entre 30 e 80 ) e que tinham no alto orifícios para dar saída à fumaça . Os chefes eram distinguidos dos demais por usarem um cocar de apenas uma cor e o chefe de todo aquele povo atendia pelo nome de AROSCA , tendo sido descrito como " de porte grave , estatura média , nédio ( ? ) e olhar bondoso " , tendo cerca de 60 anos de idade e ostentando um cocar de penas verdes . Não foi difícil para aqueles franceses fazer amizade com aquele povo : ficaram por ali praticamente 6 meses e só deixaram o lugar em 3 de julho .
      Como mandavam as leis da época , Goneville - que fora hospedado pelo chefe Arosca - ergueu uma cruz e realizou um breve e simples cerimônia , na qual simbolicamente tomava posse daquelas terras em nome do rei francês : LUIZ XII ; apenas 4 anos após aquela expedição de Cabral , SÃO FRANCISCO DO SUL tornava-se um dos primeiros pontos do litoral brasileiro a serem visitados por alguma expedição europeia ........É claro que eles não foram embora de mãos abanando : em troca de quinquilharias como pentes , facas , espelhos , machados e contas receberam dos nativos produtos como carnes , peixes , frutos , peles e penas de aves . E tinha mais : levaram um representante daquele povo "exótico " para a França ......Era ninguém menos do que IÇA-MIRIM ( o nome significa " formiga pequena " ) , filho de Arosca ,mas com uma condição : o jovem seria devolvido ao seu povo depois de 20 luas e repassaria a eles todos os conhecimentos que obteria a respeito do manejo de armas e costumes dos franceses , porém , lele jamais voltou ......Além do respeito , da confiança e da amizade do capitão Goneville , o jovem índio conquistou algo muito maior : o coração da filha de Goneville - SUSANA - com que se casou em 1521 e deixou longa  e vasta  descendência.......Naquele carregamento feito pelos franceses , equivalente a 100 quintais , estranhamente - pelo que sabe - não havia um utensílio quase tão antigo quanto a própria civilização indígena e largamente utilizado , não só na guerra , como também na caça e até mesmo em rituais religiosos : aquele usado para atirar a flecha , o BODOQUE......Uma curiosidade : embora tenha origem indígena , o nome BODOQUE , pasmem , tem origem ÁRABE e vem de BUNDUQ , ou seja " noz ou bola de argila " .......Filho de São Chico , com muito orgulho ; meio árabe e meio nórdico , o sempre irreverente HILTON GORRESEN faz na crônica de hoje mais uma de suas tradicionais viagens pelo passado, tendo um bodoque ( ! ) como ponto de partida  .......Quer embarcar ? CONFIRA :

"Meu pai tinha um bodoque de causar inveja: firme, ereto, difícil

de vergar. Antes que você, jovem leitora, pense que estou escrevendo

obscenidades,

explico que bodoque é (ou era) um arco, igual ao

usado pelos índios ( ABAIXO ) , com uma corda dupla, ligadas por um trançado no

qual se alojavam pelotas de barro endurecidas ao sol, ao invés de

flechas.

 Era a ' xilóida ' ( ABAIXO )  dos adultos.

Quem não fosse hábil em seu

manejo que não se assanhasse: era puxar a corda, vergar o arco e

pimba ! acertar um pelotaço no dedão !


Muitas vezes, fui caçar com o velho, no Miranda ou no Morro

da Palha ( ABAIXO ) , localidades fora do perímetro urbano de São Chico,

 eu com

o estilingue, conhecido como ' setra ' ,

ele com seu bodoque, do qual

se gabava ser um exímio atirador.

Tinha também um ' kit '  de

caçador : cantil, forrado de couro, mochila de lona e um apito para

chamar nhambu. Qual o pássaro que resistiria a isso ? ( ABAIXO )


Mas sempre voltávamos de mãos vazias.

Não sei se éramos

ambos ruins de pontaria ou preferíamos mesmo a caminhada pelo

mato,

 o cheiro fresco do orvalho

e a parada para um bom lanche,

deixando os pobres pássaros em paz.

Valia a pena : pelo menos, eu

ouvia as histórias de grandes caçadas do velho quando jovem, e a

gente chegava em casa com uma fome de caçador.


Meu pai gostava de pássaros. Nos fundos do casarão em que

morávamos manteve por muito tempo um viveiro de jacus ( ABAIXO ) , que era

seu orgulho.

 E ele devia mesmo ter se dedicado à caça em tempos

mais remotos, pois sempre manteve no armário da despensa uma

espingarda ( ABAIXO ) , sem uso, mas sempre lubrificada,

 além da mochila de

lona, do cantil ( ABAIXO )  e do apito de chamar nhambu.


As nossas caçadas foram se espaçando e o bodoque ( ABAIXO )

permaneceu pendurado atrás de um guarda-roupa, fora das vistas de

todos, como se fosse arma perigosa.

 Até que comecei a utilizá-lo para

brincar de índio. Fingindo que era o Flecha Ligeira ( ABAIXO )  ou Águia

Vermelha, personagens de meus gibis,

vivia cravando flechas nas

bananeiras, especialmente na de uma vizinha, que possuía o cerne

enorme e polpudo (estou falando da bananeira - ABAIXO - , é lógico).


Depois, veio a época de brincar de pirata, e o bodoque, ó triste

sina, foi serrado ao meio para se transformar em espada.

 A partir daí,

perdi a lembrança de sua trajetória, quem sabe tenha servido de lenha

para alguma fogueira vagabunda.


Nesta época, em que inocentes meninos (segundo alguns)

podem ser encontrados portando escopetas ( ABAIXO ) e metralhadoras,

quem

pensaria em fabricar um simples e antiquado bodoque ? "

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