terça-feira, 20 de setembro de 2016

O Bom Teimoso

Uma terra generosa , hospitaleira , onde tudo cresce , onde todos prosperam  e onde cada um um tem o seu pedacinho de terra e pode viver em paz ......Pobres imigrantes alemães : não lhes avisaram lá na Europa que há milênios essa mesma terra já tinha donos , que o homem branco pejorativamente e com desprezo chamava de BUGRES e que acreditavam ser essa mesma terra - outrora chamada de PINDORAMA - a terra "sem males ", dada a eles pelo generoso , poderoso e onipresente DEUS TUPÃ ( ABAIXO )  ....

Legítimos donos da terra , um grupo de índios atacou uma colônia de imigrantes alemães - tão vítimas de pessoas gananciosas e inescrupulosas quanto os próprios índios -  e nessa verdadeira tragédia anunciada uma pobre criança - para ser mais específico -, uma menina índia ( ABAIXO ) - acabou ......Donos de um coração enorme e cheios de piedade , uma família de colonos a adota e a rebatiza com um nome bem indígena : YARA .

Os anos passam e agora ela é uma moça e surge a sua primeira paixão . Isso seria algo tão normal não fosse o alvo dessa paixão : simplesmente o seu irmão de criação ( ABAIXO ) , que retribui esse amor impossível mas que , cheio de remorsos , dá cabo  de sua própria vida.....

Sentindo-se culpada , a pobre moça  foge e acaba indo parar em um lugar muito longe de casa , mais precisamente às margens do rio Tibagi ( ABAIXO ) , no Paraná ,  e lá mais uma vez encontra a paixão , na forma de um garimpeiro alemão chamado ROLF, que corresponde essa paixão logo à primeira vista daquele belíssima índia .

Pobre Yara ! Ela nem sequer desconfia que Rolf traz uma enorme mancha negra : ainda na Alemanha ele havia perdido sua noiva , seduzida que foi por um crápula  , e para mostrar sua honra mata seu maldito rival .

Ao saber disso , a antiga noiva de Rolf mata-se e para vingar a filha , seu pai decide : " Irei atrás daquele maldito , nem que seja no inferno ! ". Após descobrir o paradeiro de Rolf , enfim  o enfurecido homem

 consegue ver-se frente àquele que seria supostamente o causador da desgraça que fez sua filha tirar a própria vida e cheio de ódio e desejo de vingança dispara um tiro fatal em direção ao indefeso garimpeiro . O destino da pobre Yara ( ABAIXO ) era mesmo a tragédia : ela joga-se a frente de Rolf e que acaba recebendo o tiro fatal......

Uau , que história , não ? Esse é o resumo de "YARA " , a ÓPERA joinvilense ....O quêêê ??? Uma ópera feita em Joinville ? Em uma cidade em que há tanto tempo a CULTURA vem sendo tão maltratada e desprestigiada - como aliás , no restante do país - , apesar da incrível quantidade de artistas tão talentosos  e onde o maldito SIMDEC tem mais atrapalhado do que ajudado ( ver texto " SOLUÇÃO OU ATRASO ? " , postado no último dia 7 de julho ) , informações como essa causam espanto e até incredulidade .....

Pois naquele especialíssimo e mágico dia 17 de janeiro de 1936 - mais precisamente no imponente prédio da Sociedade Harmonia Lyra - um elenco formado quase que totalmente por uma elenco amador - embora praticamente todas aquelas pessoas já cantassem nos vários corais existentes na cidade - e reforçado pelas sociedades de canto CONCÓRDIA e HELVÉTIA , pela orquestra da própria Harmonia Lyra ( ABAIXO )

e ainda por membros da Orquestra Filarmônica de Curitiba e da banda do então 13 Batalhão de Caçadores ( ABAIXO - hoje 62 Batalhão de Infantaria ) , sob um mar de flores e o agradabilíssimo som de palmas entusiasmadas , frenéticas e prolongadas , não "apenas " alcançou sucesso : ELES CONQUISTARAM A ETERNIDADE ( a ópera seria encenada em mais 3 oportunidades : no dia seguinte e nos dias 18 e 19 de abril , no teatro Avenida em Curitiba e dessa vez com um elenco e músicos curitibanos ) ......

Alguns dias mais tarde , extasiado e talvez incrédulo com aquele espetáculo que tivera o privilégio de testemunhar , um sujeito - que assinou utilizando a apenas a letra J - escreveu um longo e descritivo comentário a respeito disso para o jornal KOLONIE ZEITUNG ( ABAIXO -  jornal escrito em alemão - o primeiro da história de Joinville - , que circulou entre dezembro de 1862 e outubro de 1942 ) e desse longo texto , destacamos um trecho que é o seguinte :

 " .....Mas o que ninguém poderá nos subtrair é que , é a satisfação imensa que todos nós trazemos dentro da alma - todos nós que tivemos o privilégio de fluir , de viver o que nos trouxe a noite de 17 de janeiro . Não pretendo negar que meus olhos e meus ouvidos se acham 'subjugados ' e que , por este motivo , não possuo nem capacidade nem vocação para a crítica . Assim , nada mais resta , senão expressar  subjetivamente o que senti e que posso comparar apenas à sensação de que tive em Dresden , onde a música da ' Salomé ' , regida por Strauss ( ABAIXO , JOHANN STRAUSS )  , de tal maneira me enlevou , que parecia estar imerso num longínquo país de sonhos ....." Na verdade , a história de "Yara " começa muito antes daquele histórico 17 de janeiro de 1936......

    O autor do libreto que deu origem à ópera , vejam só , era "um pacato cidadão da civilização " : o imigrante alemão OTTO ADOLF NOHEL . Infelizmente sabe-se muito pouco a respeito dele : contabilista e professor de ciências comerciais , supõem-se que teria se radicado no Brasil na década de 20 e que após viver um breve período em Joinville ( uma edição do Kolonie Zeitung , de junho de 1931 , traz um anúncio de seu escritório de contabilidade ) mudou-se para Corupá , então um dos 3 distritos de Joinville ( os demais eram Jaraguá do Sul e Guaramirim , então chamada de Bananal  ) e que tinha o germaníssimo nome de HANSA HUMBOLDT ( ABAIXO , EM FOTO DA DÉCADA DE 20 ) .

 Em 19 de janeiro de 1932 dirigiu-se para Joinville para acertar os últimos detalhes com seu velho amigo para transformar o libreto em ópera , mas essa conversa jamais aconteceu : acabou falecendo nas proximidades de Jaraguá do Sul , vítima de um acidente automobilístico.....O velho amigo de Otto era o pianista e maestro austríaco JOSEF PRANTL ( ele era natural da cidade de Schwaz , na região do Tirol - ABAIXO  ) , figura amiga e simpática e chamada carinhosamente chamado de "PEPI" ( em alemão pronuncia-se " PÊPI " ) .

 Embora radicado em Joinville desde o final de outubro de 1929 , poucas pessoas tinham tido o privilégio de testemunhar alguma de suas apresentações : elas se resumiam a concertos restritos aos sócios da Harmona Lyra e a algumas poucas ocasiões especiais ( Pepi também era maestro da Sociedade de Cantores Concórdia e dono do próprio conservatório de música , que funcionava na Rua do Príncipe - ABAIXO , A RUA DO PRÍNCIPE , EM 1932 - desde janeiro de 1930 , em parceria com um amigo , o violinista joinvilense EVALDO MUELLER ) .


Pode-se dizer que a ideia de se encenar uma ópera genuinamente joinvilense era quase tão antiga quanto a sua presença na cidade : entre maio de 1931 e setembro de 1935 cinco  óperas ou operetas regidas por Pepi Prantl foram encenadas em Joinville ( consta que em uma dessas ocasiões 4 trechos de "Yara " chegaram a ser encenados , tendo sido cantados por LOTTE - a mulher de Pepi - e HEDWIG SCHLEMM PFUETZENREUTER , cantora nascida em Joinville e com estudos na Alemanha ) , todas elas com boa repercussão  e quase que completamente formadas por músicos e elencos amadores .( ABAIXO , PASSAGEM DO DIRIGÍVEL GRAFF ZEPPELIN POR JOINVILLE , EM 1934 )

 Mas se Otto Nohel faleceu em 1932 então por que só em 1936 que " Yara " acabou sendo encenada ? Talvez a resposta remonte a julho de 1935 : nessa ocasião uma companhia italiana esteve de passagem por Joinville e encenou 3 óperas - " LA TRAVIATA "( ABAIXO )  , " TOSCA " e " ROGOLETTO " - e obteve boa repercussão . Era o pretexto que Pepi Prantl precisava para tirar do papel a tão sonhada e planejada ópera joinvilense ( curiosamente , o papel de Yara foi interpretado pela esposa de Pepi ) ......

Infelizmente a data de 17 de abril de 1937 , ou 1 ano e 3 meses após aquela mágica encenação de "Yara " , foi o "canto do cisne " : nessa ocasião Pepi fez a sua despedida como regente da orquestra da Sociedade Harmonia Lyra ( as 17 músicas que foram tocadas eram de sua própria autoria ) e voltou para a sua pátria natal , onde viveu os últimos 14 anos de sua vida : morando na cidade de Bludenz ( ABAIXO ) , Pepi organizou espetáculos tanto de música quanto de teatro , lecionou música , compôs músicas dos mais variados gêneros musicais e , vítima de uma terrível companheira e adversária - a ASMA - , veio a falecer em 25 de novembro de 1951 , aos 55 anos ( nascera em 1896 ) .

 Em 24 de maio de 1952 , numa justíssima e bela homenagem , aconteceu na Harmonia Lyra ( ABAIXO ) um concerto intitulado " NOITES DE ARTE " e na qual foram executadas apenas músicas de autoria do já saudoso pianista-maestro-compostor . Quanto à ópera " Yara " , infelizmente jamais voltou a ser encenada ......

Diante de tudo o que exposto , é de se imaginar o magnifico pólo cultural a nível nacional que seria Joinville caso as estúpidas Segunda Guerra Mundial ( 1939 -1945 ) jamais tivesse eclodido e CAMPANHA DE NACIONALIZAÇÃO do governo brasileiro - que geraram traumas , perseguições , sofrimentos e destruições de entidades sócio-culturais , desportivas e recreativas nas comunidades alemãs , italianas e japonesas Brasil afora - jamais tivessem ocorrido .( ABAIXO , UMA VISTA DA REGIÃO DA ATUAL AVENIDA JUSCELINO KUBITSCHECK , EM FOTO DE 1924 )

 Mais ainda : o provável sucesso nacional de "Yara " - ou talvez até mundial - representaria a inserção definitiva de Joinville ( ABAIXO , UMA VISÃO DA PRAÇA NEREU RAMOS , NA DÉCADA DE 40 ) no cenário brasileiro , um verdadeira " tapa com luva de pelica " naqueles que afirmavam que Joinville era "um pequeno pedação de Alemanha encravado no Brasil "( ou "um estado dentro do estado " , como certa vez insinuou um jornal carioca ) .

 Só que é aquele negócio , o "SE " não existe : SE meu pai fosse mulher eu não existiria , SE Cabral não tivesse aportado no Brasil , SE os holandeses conquistassem o Brasil de maneira definitiva , SE Tancredo Neves ( ABAIXO ) não falecesse ....

     Porém , não custa nada fazer um exercício de imaginação : e se naquela mágica noite de 17 de janeiro de 1936 o papel do garimpeiro alemão Rolf tivesse sido interpretado por um sujeito de talento ímpar , chamado DOUGLAS HAHN ? Joinvilense , nascido em 15 de janeiro de 1969 , ou praticamente 33 anos após aquele histórica noite , Douglas ( ABAIXO ) jamais pensou em viver exclusivamente da música e em função dela : embora já cantasse em corais desde os 14 anos de idade e tivesse estudo canto na Escola de Música Villa Lobos  da Casa da Cultura de Joinville entre janeiro de 1990 e junho de 1995 , viver de música em um país como Brasil e em uma cidade como Joinville é algo praticamente inconcebível e destinado a alguns poucos sortudos e " escolhidos " .....Resultado : para sobreviver , Douglas trabalhava no burocrático e chatíssimo serviço de bancário .

Descoberto meio que por acaso quando ainda era um aluno de canto na escola Villa Lobos , coube a uma dupla de professores de Curitiba - RIO NOVELLO e NEYDE THOMAS     - perceber o tremendo talento que estava sendo desperdiçado : Douglas era uma joia bruta a ser lapidada e além de aperfeiçoar suas técnicas vocais , ainda aprendeu a ler partituras musicais . Está certo que o preço das aulas era mais salgado do que um bom bacalhau - cada aula custava 30 dólares ( ! ) - mas TEIMOSO - no bom sentido - Douglas prosseguiu , até que veio a péssima notícia : aos 26 anos , ele perdeu seu emprego e foi engrossar a fila dos desempregados ....E agora , Douglas ? ( ABAIXO )

Adotado pela sua dupla de professores curitibanos como se fosse um filho e tendo recebido uma bolsa de estudos , ele passou a morar em Curitiba e pôde enfim se dedicar à sua real vocação  , com a sua estreia como músico profissional ( ABAIXO ) tendo ocorrido  em 1996 e em Florianópolis : na ocasião participou de nada menos do que a clássica ópera tupiniquim "IL GUARANI " . E não parou mais : participou de clássicos da ópera , como " LA TRAVIATA " , " LA BOHÉME " , " MADAME BUTTERFLY " e " IL BALLO IN MASCHERA " ( essa ópera foi baseada em um fato real : o assassinato do rei sueco CARLOS III , em um teatro em 29 de março de 1792 ) ; de incontáveis concertos e performances , tanto em locais públicos quanto para públicos seletíssimos ;

conquistou um número igualmente incontável de prêmios ( como o " PRÓ MÚSICA " , em 2008 ) , elogios ( dos mais diversos órgãos de imprensa do Brasil , qualificando-o , entre outras coisas , de BRILHANTE e INTELIGENTE ) e homenagens ; apresentou-se em várias regiões , tanto do Brasil quanto da América do Sul , e tem como um de seus grandes orgulhos o fato de ter se apresentado no tradicionalíssimo teatro COLÓN ( ABAIXO ) , em Buenos Aires ......

Apesar de tanto reconhecimento , Douglas é mesmo um teimoso : jamais troca Joinville por nada e - generoso e consciente - em 2005 , junto ao INSTITUTO CAL HANSEN , fez um louvável trabalho de inserção de crianças estudantes de escolas da rede pública municipal na música erudita . Barítono e único cantor lírica da cidade , Douglas ( ABAIXO ) é também membro da Academia Catarinense de Letras e Artes e diretor artístico , desde outubro de 2014 , da tradicionalíssima e histórica Sociedade Harmonia Lyra .

Tanta teimosia vem dando frutos : desde 2015 realizava-se todos os meses o INTERLÚDIO , ou seja , apresentações de música erudita na Harmonia Lyra ( mais especificamente na SALA MOZART ) a um preço bastante acessível .....No vídeo do dia , uma entrevista para a jornalista KAROLINE MEYER , ele comenta sobre os projetos culturais desenvolvidos pela Harmonia Lyra e , é claro , ao fim solta o "gogó " ( ABAIXO ) .....VALE A PENA CONFERIR !

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